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O que é a Lei Rouanet e por que ela é alvo de ataques contra a cultura – POA SHOW

Existente no Brasil há mais de três décadas, a Lei Rouanet — que tem como intuito incentivar a cultura no País — tem sido alvo de críticas nos últimos anos, supostamente pelo alto valor agregado na captação de recursos, em editais previamente aprovados pelo governo federal e que seguem critérios rigorosos. Tais críticas acentuam uma espécie de “guerra cultural” entre quem defende o programa e quem é contra. O idealizador da lei, o diplomata e filósofo .

A mais recente das críticas ocorreu em 13 de maio, coincidentemente vindo da classe artística. O cantor Zé Neto, da dupla com Cristiano, esbravejou em um show na cidade de Sorriso (MT), que não recebe recursos através da lei, e

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Estamos aqui em Sorriso, Mato Grosso, um dos estados que sustentou o Brasil durante a pandemia. Nós somos artistas que não dependemos da Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no ‘toba’ para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente. Zé Neto, em show

Boa parte do público sabe que a cantora , primeira e única artista brasileira a ser Top 1 Global no Spotify, — a cantora falou sobre o desenho no “Ilhados com Beats”, e até postou um vídeo retocando a tattoo no OnlyFans. À época, seus fãs saíram em sua defesa, e .

Acontece que mais recentemente vieram à tona o recebimento de cachês de sertanejos com altas cifras pagas com verba pública de prefeituras, que renderam denúncias em Ministérios Públicos estaduais. Somente Gusttavo Lima teve três shows alvos de investigação, — dias antes ele teve apresentação em Minas, no valor de R$ 1,2 milhão cancelada, também após o MP mineiro receber denúncias.

Filme brasileiro "Central do Brasil" indicado ao Oscar 1999; Lei Rouanet foi o principal mecanismo de fomento à cultura no Brasil nos últimos anos Imagem: Divulgação

O que é a Lei Rouanet?

“A Lei Rouanet é um instrumento de fomento público à cultura, como a gente tem em vários outros países do mundo. […] Ela é uma forma de captação de recursos junto à iniciativa privada que implica a redução dos valores de impostos a pagar por empresas privada”, explica a Splash Vitor Rhein Schirato, professor doutor do DES (Departamento de Direito do Estado) da FD-USP (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo).

A Lei Nº 8.313 de Incentivo à Cultura foi sancionada pelo então presidente Fernando Collor em dezembro de 1991. A partir daquele momento ficou instituído o Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura) e desde então a regulamentação ficou conhecida como Lei Rouanet devido a uma homenagem ao criador Sérgio Paulo Rouanet, na época Secretário da Cultura da Presidência da República.

Podem captar recursos privados após submissão de projetos e aprovação da Secretaria Especial da Cultura, um grupo artístico, seus representantes, uma produtora, dentre outros. “São empreendedores dos mais diversos campos, pessoas que vão conduzir um projeto na área cultural, , literatura, audiovisual”, explica Schirato.

“Isso é muito bom porque independente da qualidade musical ou artística, ou se é um museu/centro cultural, independente de qual setor da cultura que venha a ser, [qualquer um] pode se cadastrar para tentar ir atrás de conseguir recursos da iniciativa privada e pessoa física”, complementa Edgard Rebouças, professor doutor e pesquisador de Indústrias Culturais e Midiáticas na Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).

Depois de autorizados, os produtores podem buscar investimento privado de empresas que também são cadastradas que se interessem no financiamento de tais projetos no âmbito cultural. A contrapartida é que, respeitados os limites que a própria lei impõe, as empresas podem abater o valor investido no .

Teatro Bradesco; apresentações teatrais podem captar recursos privados com a Lei Rouanet Imagem: Vagner Costa

‘Não tem desembolso de recurso público’

“É um trabalho muito grande dos artistas e das produtoras para irem atrás e se cadastrarem, cumprirem todos os requisitos qualitativos, quantitativos e burocráticos que exige a lei Rouanet. O governo não tem que desembolsar nada [para] a lei Rouanet, pelo contrário, até diminui a carga de orçamento da cultura, porque, como acontece em outros países, sabe-se que a iniciativa privada vai optar pela renúncia fiscal”, ressalta Rebouças.

“Não tem desembolso de recurso público. O que tem é uma redução da base tributária da empresa que apoiou o projeto”, corrobora Schirato, lembrando que a legislação sofreu mudanças nos últimos anos. “A lei sofreu alterações recentemente. […] Foi alterado o valor máximo de captação e foi alterada a forma de aprovação”.

Essa alteração ao que o professor da USP se refere . O valor máximo por projeto incentivado caiu de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão, e foi estabelecido um teto de R$ 10 milhões anuais para os solicitantes com até 16 projetos ativos.

, outra mudança: foi reduzido pela metade o valor máximo de isenção fiscal para o financiamento de projetos culturais por parte de empresas, de R$ 1 milhão para R$ 500 mil. Também surgiu um novo teto autorizado para o financiamento livre de impostos do cachê de um artista solo de R$ 45 mil para R$ 3 mil.

Se você quiser fazer um hoje, fazer uma ópera com recursos da Lei Rouanet, é impossível porque o teto é muito baixo. Vitor Rhein Schirato, professor da FD-USP

A alteração também é duramente criticada por Rebouças. “Criaram mecanismos dificultando cada vez mais o acesso à Lei Rouanet, aos critérios para obtenção da aprovação [dos projetos]. [São] Tetos absurdos que no setor de cultura e no setor das artes não tem como você estabelecer porque você não tem como qualificar determinado artista que deve receber mais ou que deve receber menos”.

Possibilitando recursos privados, pode ser que os críticos à lei confundam que tenha alguma participação de verba pública, o que não ocorre. “Se chegaram a ocorrer alguns desvios e, realmente tiveram alguns problemas na fiscalização da aplicação da lei Rouanet, isso a gente então que melhorar os mecanismos de fiscalização e de cobrança dessa prestação de conta e não simplesmente cortar a lei ali pelo pelo pé, que acaba afetando todo um setor”, salienta o professor da Ufes.

Claudia Leite teve autorização para captar R$ 5,8 milhões pela Lei Rouanet, captou R$ 1,2 milhão, mas foi solicitada devolução do montante em 2016 Imagem: Divulgação

Schirato recorda denúncias de obras que talvez não tiveram captação ou prestação de contas adequadas, . “Mas [criticar a lei hoje] é ideológico. Não tem uma regra sobre o que pode e o que não pode ser objeto de captação de recursos no âmbito da Lei Rouanet. Na minha visão, essa crítica que tem [ao setor cultural brasileiro] é totalmente ideologizada”.

Outros países

“Instrumentos de fomento à cultura com crédito tributário é um negócio que tem no mundo inteiro. É só você ver um filme em espanhol, um filme francês, um filme italiano, um filme argentino que você vai ver o logo de várias empresas que estão patrocinando, as empresas patrocinam não só pela exposição da marca, mas pelos benefícios que isso gera do ponto de vista fiscal”, elucida Schirato.

Leis de incentivo à cultura semelhantes a do Brasil estão presentes em vários países como Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha e Itália.

“Mas, além disso, esses outros países também têm um grande orçamento para a cultura e as artes, uma coisa que no Brasil é cortado cada vez mais e não faz parte de um projeto de nação dar incentivo [ao setor cultural]. Isso já tem de alguns poucos anos pra cá, incrementou mais ainda, piorando cada vez mais”, lembra Edgard.

Sérgio Reis, Latino e Netinho são alguns dos artistas que criticam a Lei Rouanet Imagem: Reprodução/ Montagem

Verba pública x recursos privados

, principalmente por prefeituras. Inclusive, há um contrato feito por uma modalidade chamada de “inexigibilidade”, permitida por lei e que deixa o poder público celebrar contratos sem licitação com competição, afinal, não seria possível colocar em editais concorrência entre artistas para mensurar quem é melhor.

Mas existe um porém, que é a incapacidade, na maioria das vezes, de se rastrear a verba utilizada, já que não há controle específico. Além da prestação de contas geral do município, somente o Tribunal de Contas, o Legislativo Municipal ou o MP podem questionar os gastos relativos a essas apresentações.

“Esses contratos de prefeitura com inexigibilidade são uma bizarrice, são uma coisa absolutamente ridícula. […] Qual é o problema? É um dinheiro gasto absolutamente sem nenhuma transparência. A prefeitura paga um valor para um empresário de um determinado cantor. Ninguém sabe se esse dinheiro não volta pro gestor público […] se tem algum tipo de esquema ilícito por trás”, explica Schirato.

“É perfeitamente possível a prefeitura pagar um milhão de reais para um determinado artista e esse artista voltar a esse um milhão de reais [e dividir] para parentes do prefeito, para amigos do prefeito, para o partido. Enfim, tudo aquilo que a gente está mais do que cansado de ver no Brasil em termos de corrupção”, lembra o professor, citando um valor hipotético.

Classificando esses contratos como “extremamente perigosos” pela falta de transparência, ele acredita que essa modalidade deveria ser proibida. “Não tem transparência, é um gasto público que não faz nenhum sentido porque eu estou usando dinheiro público para pagar show para a população”.

Como já citado, o cantor Gusttavo Lima está sendo alvo de investigações devido a cachês de shows que variam de R$ 800 mil a R$ 1,2 milhão. Dois dos contratos disponíveis nos portais de transparência de prefeituras que ele faria shows e que Splash teve acesso mostraram que foram firmados na modalidade de inexigibilidade.

Contratos de Gusttavo Lima, e as duplas Bruno e Marrone, e Israel e Rodolffo; os dois primeiros artistas tiveram apresentação cancelada Imagem: Reprodução/ Prefeitura de Conceição do Mato Dentro (MG)

Portal de Transparência de Magé (RJ) exibe licitações por "inexigibilidade" em contratos de shows, sendo um deles de Gusttavo Lima (representado pela Balada Eventos) Imagem: Reprodução/ Prefeitura de Magé (RJ)

“Ao contrário da Lei Rouanet que tem um processo público, que é transparente, que todo mundo sabe quem investiu, quanto investiu, no que investiu e como é que foi gasto o dinheiro, esses cachês pagos por prefeitura são buraco negro, ninguém sabe. Eu sei que a prefeitura XYZ pagou quinhentos mil reais, seiscentos mil reais para a empresa que agencia a carreira de um determinado artista. Porém ninguém sabe o que aconteceu depois daí”, acentua o professor da USP.

Retorno ‘imensurável’

“Aqueles que criticam a cultura e as artes como sendo algo caro não entendem nada do que representa o setor das indústrias culturais, que na verdade traz um grande ganho para a sociedade. Já houve estudos que mostram que para cada real investido há um retorno de quase 50% do que é retornado em forma de ganho, inclusive de ganho financeiro. Mas para além disso o ganho simbólico que permanece para a sociedade é que é muito maior”, afirma Edgard Rebouças.

Ele ressalta que leis como a Rouanet ou qualquer outra que incentive o patrocínio à cultura e as artes proporcionam um retorno “imensurável”. “Você não tem como medir o ganho para a sociedade e para gerações de jovens, adultos, idosos do que é ter acesso ao teatro, a música, as tradições culturais de um povo, ao cinema”.

“O retorno que a lei Rouanet dá é fomento à cultura, difusão de obras culturais, maior abrangência de audiovisual. Todo mundo fica feliz quando um filme brasileiro é indicado ao Oscar. Só que nunca nós vamos ter filme indicado ao Oscar se não tiver dinheiro pra fazer filme”, finaliza Schirato.

Fonte: poashow.com.br/2023/09/11/o-que-e-a-lei-rouanet-e-por-que-ela-e-alvo-de-ataques-contra-a-cultura